Punição ambiental antecipada e “morte civil” do empreendedor
- Georges Humbert
- há 2 dias
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Punição ambiental antecipada e “morte” do empreendedor
Georges Humbert. Advogado, professor, pós-doutor em direito pela Universidade de Coimbra, Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP, vice-presidente de Sustentabilidade e Regulatório da Associação Comercial da Bahia – ACB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade – IBRADES
Com a legítima, democrática e constitucional finalidade de ampliar os meios de combater o desmatamento e outras infrações ambientais graves, o Poder Executivo brasileiro passou a adotar uma nova orientação da Advocacia Geral da União, segundo a qual uma nova regra que proíbe órgãos das diversas esferas da administração pública de contratar pessoas ou empresas que estejam na lista de inidôneos por grave infração ambiental. A esta via sancionadora, de ordem econômica, já prevista em lei, acresce-se a proibição de receber incentivos econômicos e benefícios fiscais, o que inclui financiamento em bancos estatais. Tais mecanismos merecem aplauso, desde que aplicado nos termos da Constituição e normas derivadas.
É inegável que a simples existência de uma ação de improbidade causa prejuízos aos réus, que, desde logo, tornam-se alvos de um juízo moral de reprovação a macular a imagem dos envolvidos. Por isso é essencial que a fase de defesa prévia seja efetivamente encarada como uma etapa essencial do processo, e não simplesmente uma obrigação processual, pois é nela que devem ser barradas ações manifestamente improcedentes, mal dirigidas e precariamente formuladas, sem documentação ou elementos mínimos de prova, sem identificação e quantificação do dano, e até sem a imputação de conduta. Por isso mesmo, é pressuposto constitucional, enquanto garantia fundamental das pessoas físicas e jurídicas em um Estado Democrático de Direito, gozar da presunção da inocência, apenas desconstituível por uma sentença judicial transitada em julgado ou por uma decisão final em processo administrativo, após o devido processo legal e sempre assegurados o contraditório e a ampla defesa.
Todavia, tem se assistido um punitivismo antidemocrático, um negacionismo ao contraditório, ampla defesa e devido processo legal em matéria constitucional. É que, muitos supostos infratores ambientais estão sofrendo as sanções de ter acesso vedado ao crédito e a contratações, antes mesmo de ser notificada, de ser ouvida, de apresentar defesa, de produzir prova.
Ora, não se pode, ao arrepio da legislação em vigor, impor a a sanção sem antes assegurar o contraditório e ampla defesa, inclusive o direito a recurso, e após o trânsito em julgado administrativo, sob pena daquele agente e órgão que promova a divulgação da sanção ainda não confirmada em processo regular atentar frontalmente com as já citadas garantias e direitos fundamentais, assim como violar princípios da administração pública, notadamente os da moralidade, o da probidade administrativa, o da impessoalidade e o da legalidade, sendo certo que em razão disto o agente e o órgão estão passíveis à responsabilização objetiva pelos danos materiais e morais causados, além de poder incidir em crimes de abuso de autoridade.
Por isto mesmo, por dever constitucional e democrático, a lei federal de processo administrativo (Lei 9784/99, arts. 3°, inciso III e art. 38) – e também as diversas leis estaduais e municipais - prevê o seguinte rito processual não obedecido no caso concreto, já que deve ser anterior à Autuação para aplicação de pena: 1 – expedição de auto de infração (sem multa) e abertura de prazo para a defesa; 2 – decisão da administração sobre a defesa; 3 – recurso; 4 - decisão final; 5 – Autuação, com notificação prévia para formar conversão ou pagamento, com desconto, ou parcelado, da multa consolidada.
Não é demasiado registrar que a forma de aplicação da pena em debate, além de ter desconsiderado o contraditório e a ampla defesa, viola também o princípio da fiscalização orientadora, que, por sua vez, decorre diretamente do devido processo legal (art. 5°, da CF), eficiência (art. 37, da CF) e prevenção/precaução (art. 225, da CF). A referida norma da fiscalização orientadora foi expressamente acolhida pela Lei Complementar Federal nº. 123/06 e já regulamentada pelo IBAMA, mediante a Instrução Normativa nº. 211/2008 e IMETRO, pela portaria n.° 436/07. Na sua essência, impõe aos órgãos fiscalizadores da administração pública, incluindo os ambientais, que seja obedecido o critério de dupla visita para aplicação de qualquer sanção ou para se imputar responsabilidades e deveres de reparação.
Com efeito, inscrição de um devedor no Cadin (Cadastro Informativo de Débitos Não Quitados do Setor Público Federal) exige uma notificação prévia ao devedor. A lei 10.522/2002 estabelece que a inclusão no Cadin deve ocorrer 75 dias após a comunicação ao devedor da existência do débito.
Além desta norma, a intimação prévia prevista no artigo 2°, parágrafo 2°, da Lei 10.522/02, e que o princípio da legalidade estrita impede que a administração deixe de cumprir o mandamento legal.
A comunicação prévia ao devedor é etapa fundamental do procedimento de inscrição no Cadin e deve ser observada pela administração pública. Contudo, nas situações de não pagamento voluntário de prestações em programa de parcelamento tributário, em que ocorre a reativação do registro no Cadin, não haverá necessidade de nova comunicação ao devedor, bastando para isso a primeira notificação. Somente se não houve essa primeira notificação será preciso fazê-la.
Nessa linha de raciocínio se pronunciou Ives Gandra Martins, "in verbis":
"Reza a Constituição Federal em seu art. 5º, inciso XXXV, que: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito; como que não se pode impedir ao contribuinte o direito de ir a Juízo discutir, em ação anulatória de débito fiscal, pretensão da Receita Federal imposta em causa própria e em processo administrativo, em que é parte e Juiz ao mesmo tempo." (Repertório IOB de jurisprudência, 1º quinzena de fev., 1995, p. 56).
Analogicamente, poderia aplicar-se à matéria em discussão, o disposto na Súmula nº 70 do Supremo Tribunal Federal:
"É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para a cobrança de tributo."
As sanções impostas administrativamente podem, se mantidas por mais dias, representar a verdadeira vedação ao exercício de qualquer atividade, relativamente àquelas pessoas (físicas ou jurídicas) insertas na "lista de degradadores e autuados", antes de transitar em julgado ou mesmo antes de sequer apresentar defesa.
Há, assim, flagrante violência ao artigo 170, parágrafo único da CF/88, que veda a criação de obstáculos ao exercício de qualquer atividade, representando a Medida Provisória nº 1.142/95, clara, cristalina, notória e inequívoca inconstitucionalidade à luz da Carta Maior.
Não se pode, ao arrepio da legislação em vigor, impor a a sanção sem antes assegurar o contraditório e ampla defesa, inclusive o direito a recurso, e após o trânsito em julgado administrativo, sob pena daquele agente e órgão que promova a divulgação da sanção ainda não confirmada em processo regular atentar frontalmente com as já citadas garantias e direitos fundamentais, assim como violar princípios da administração pública, notadamente os da moralidade, o da probidade administrativa, o da impessoalidade e o da legalidade, sendo certo que em razão disto o agente e o órgão estão passíveis à responsabilização objetiva pelos danos materiais e morais causados, além de poder incidir em crimes de abuso de autoridade.
O democrático e fundamental direito constitucional de defesa deve anteceder a aplicação da pena, conforme prescreve o art. 5°, da Constituição Federal, isto é, antes mesmo da aplicação de qualquer sanção. É lícito, inconstitucional, ilegal e antidemocrático, a vedação à contratação, ao aceso aos financiamentos, créditos, isenções e benefícios fiscais imediatamente após a mera expedição auto de infração ou embargo ambiental. Configura ilícito, crime e abuso de autoridade punir o autuando ambiental antes do fim do processo e homologação do auto de infração.
A defesa prévia ganha mais realce e importância, à luz das novas normas que se aplicam aos atos administrativos que podem ser enquadrados em improbidade. Refere-se, aqui, à Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, à Lei de Abuso de Autoridade e à Lei de Liberdade Econômica.
Portanto, forçoso concluir que, não havendo decisão administrativa final, isto é, somente lavrado o auto de infração ou embargo, é vedada a imposição de qualquer obrigação ou medida restritiva, incluindo a proibição de contratar com o Poder Público, obter benefícios econômicos de fomento, fiscais ou mesmo acesso a crédito em bancos estatais, pena de se configurar grave ofensa à Constituição, ao Estado Democrático de Direito e às leis processuais, notadamente, em relação ao aspecto material e formal, ao disposto no artigo 5º, incisos XXXV, LV e LVII; artigo 37 e artigo 170, § único.
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