Claudia Leitte vem sendo acusada de intolerância religiosa, por ter trocado uma palavra e uma das músicas que interpreta. Foi repreendida pelo então secretário de cultura de Salvador, pela artista Ivete Sangalo e por diversos segmentos de representação da sociedade e das religiões de matriz africana. Diante da repercussão, o Ministério Público instaurou procedimento.
A conduta da cantora é, nos últimos dez anos, com autorização dos compositores, anuência do público em geral e das mídias e redes, trocar a palavra Yemanjá por Yeshua. Por esta razão, vem sendo acusada pelo tribunal internet e investigada pelo Ministério Público pela pratica do crime de intolerância religioss face as religiões de matriz africana. Não há intenção de violentar, segregar, eliminar, estimular ódio, extirpar, desagregar, diminuir qualquer religião nisso.
Ademais, é hipótese do crime ser impossível ou, no mínimo, conduta sem antijuridicidade, no caso concreto.
Isto porque ela canta assim há dez anos como parte da arte carnavalesca e do axé music, cuja característica é o sincretismo religioso, até porque, essa é uma manifestação cultural cuja essência é juntar todos, pois, como já vaticinaram os poetas "sagrado e profano, o baiano é" e "atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu".
Além disso, outra forte razão que afasta a malfadada e ignorante hipótese intolerância religiosa no caso concreto é que Claudinha é assídua parceira da Timbalada e do Candeal.
"Timbalada é um fenômeno que nasceu na década de 90, com carlinhos brown, e se tornou um dos mais importantes nomes da cultura afro-brasileira. Por sua vez, o Candeal é uma das mais antigas comunidades de Salvador, Bahia. Seu nome tem origem na existência da planta candeia, que no inicio da formação do bairro, por volta do século XVIII, era abundante na região. Com forte herança africana, a comunidade foi criada a partir da união de Manuel Mendes e Josefa de Santana, negra liberta da Costa do Marfim que chegou ao Brasil em 1769 em busca de parentes que vieram escravizados. Conta a história que a família comprou a “Roça Candeal Pequeno” local que, posteriormente, se tornou um “quilombo urbano”, onde D. Josefa comprava e libertava negros e acolhia fugitivos. Com este contexto histórico de uma comunidade com características quilombolas, o Candeal nunca perdeu sua estreita relação com as influências de suas matrizes/motrizes africanas."
Resumindo pesquisas científicas de historiadores e especialistas, “a intolerância religiosa é um termo que descreve a atitude mental caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar práticas e crenças religiosas de terceiros, ou a sua ausência. Pode-se constituir uma intolerância ideológica ou política, sendo que, ambas têm sido comuns através da história. A maioria dos grupos religiosos já passou por tal situação numa época ou outra. Floresce devido à ausência de liberdade de religião e pluralismo religioso. Perseguição, neste contexto, pode referir-se a prisões ilegais, espancamentos, torturas, execução injustificada, negação de benefícios e de direitos e liberdades civis. Pode também implicar confisco de bens e destruição de propriedades, ou incitamento ao ódio”.
Diante deste cenário, é de clareza solar que a cantora Claudia Leitte, ao substituir uma palavra em uma música, não repreende, ataca e nem persegue nenhuma religião. Além disso, como fé senso comum, arte e religião não se confundem, apesar de ambas se misturarem culturalmente, em diversos cenários. De todo modo, quando Ivete "Maceta o Apocalipse", Durval canta “Xo Satanás ”, Roberto Carlos canta “Nossa Senhora me de a mãe”, Caetano “Odoya Iemanjá”, Bell anuncia que "Se você é Chicleteiro, Deus abençoa, se você não é, Deus de perdoa", Cláudia louva Yeshua, nas canções originais, em adaptação, paráfrase ou mesmo se fosse numa paródia, não há estímulo a aniquilar, ofender, diminuir, extinguir, violentar, enfim, ser intolerante ou perseguir qualquer religião, mas apenas fazer arte, espalhar amor, alegria, gerar emprego, renda, cultura e vibrações positivas.
Importante ressaltar que a lei nº 20.451, de 22 de abril de 2019, agora, prevê pena de 2 a 5 anos para quem obstar,impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. A intolerância religiosa gera divisões na sociedade, prejudica o convívio pacífico entre os diferentes grupos e fere os direitos humanos. É um crime inafiançável o que fere a liberdade e os direitos fundamentais de cada indivíduo. A liberdade de crença é um direito humano essencial e deve ser respeitada em todas as instâncias da sociedade. Com isso, atitudes agressivas, ofensas e tratamento diferenciado a alguém em função de sua crença ou de não ter religião são crimes inafiançáveis e imprescritíveis.
Ora, como alguém que tolera, mais que isso, frequenta, é amiga, coopera, frequenta um lugar do axé e canta ao som do timbáu, ambos de gênese nas religiões de matriz africana, pode ser perseguida e julgada por prática de intolerância religiosa? Se puder, vai ser na Bahia o primeiro caso, uma vez onde, segundo o saudoso Otávio Mangabeira, os maiores absurdos tem precedente.
Portanto, seja por atipicidade, ausência de dolo ou culpa, ou por contexto histórico e da ocasião em que o crime seria impossível, impertinente acusar, investigar cancelar - como se faz no tribunal autoritário da internet, Claudinha de prática do crime de intolerância religiosa. Além de configurar possíveis crimes contra sua honra, causar danos morais e de imagem, banaliza e relativiza algo grave, que merece ser tratado de forma responsável e mediante o devido processo legal.
Georges Humbert, advogado, professor, pós-doutor em direito e presidente do Ibrades.
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