1 - O problema
Diante de um ensino deficitário, de um Estado que dita as regras de como deve ser a educação dos alunos e não consegue realizá-la de maneira satisfatória, da violência de comunidades, das agressões sofridas, bullying, doutrinação política realizada, questiona-se, por que não se permitir o direito dos pais de ensinarem seus filhos e instruí-los em seus próprios lares?
Pior: um ano sem aula - ou com aula improvisada, online, até para as crianças de um a 6 anos! Não é segredo, e já estamos cansados de ouvir a cada ano que passa o Brasil ocupando os mais baixos níveis de educação mundial.
No ano de 2016 o Brasil ocupava a 63ª posição em ciências, na 59ª em leitura e na 66ª colocação em matemática, segundo dados do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos). Tornou-se um problema crônico no país. (G1, 2016)
Em contrapartida temos um movimento não muito recente mundo a fora que tem chegado ao Brasil e alcançado adeptos. O modelo de ensino domiciliar ou como é conhecido no exterior “homeschooling”, não é novo como forma alternativa à escolarização formal, países como Estados Unidos, Reino Unido, Bélgica, Holanda, têm legislações sobre o assunto e as permitem sem maiores problemas.
O Brasil ainda não tem uma legislação especifica regulamentando a matéria, o que deixa os pais dos educandos numa situação instável, muitos têm medo de serem punidos com multas pela retirada das crianças da escola ou até mesmo perder a guarda dos filhos simplesmente porque entenderam ser uma melhor opção ensinar os filhos em casa.
Outra questão que pesa sobre os pais e responsáveis das crianças em idade escolar é o fato de muitos juízes entenderem o ensino doméstico como a prática do delito do art.246 do CP, abandono intelectual. Além disso, nossa atual constituição não dispôs especificamente sobre tema, muitos pais e educadores fazem uma interpretação à luz dos artigos que resguardam o direito à educação, e a responsabilidade da família e sociedade no processo de escolarização dos filhos. Não há, porém, uma vedação expressa nem uma autorização, aumentando ainda mais a insegurança daqueles que praticam o modelo alternativo à escolarização formal.
Então, o que se vê é o desrespeito à dignidade da pessoa humana, a quebra de princípios basilares do Estado Democrático de Direito, este mesmo Estado que promete dar uma educação é o mesmo que a descumpre, que nega este direito aos seus cidadãos. É por isso que cada vez mais famílias têm entrado com ações na justiça requerendo o direito de praticar o ensino doméstico, de forma que o tema oscila entre a Câmara dos Deputados e o STF, ainda mais na pandemia.
Esse artigo visa trazer maior reflexão e lançar luz sobre o tema, informar àqueles interessados no ensino doméstico sobre os países onde a prática é legal e funciona bem, trazer questionamentos e respondê-los a medida do possível, uma vez que aumenta a cada ano o interesse, bem como o número de materiais sobre assunto, além de mostrar que cada vez mais têm surgido associações de pais e interessados exigindo uma postura ativa do Estado brasileiro para que regule o modelo de ensino doméstico no país, já que a volta das aulas, ocorrida em todo o mundo, sequer tem previsão por aqui.
2 - DO QUE SE TRATA ENSINO DOMICILIAR?
Segundo o Decreto-Lei n.º 553/80 Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo (1980) da República Portuguesa, no art. 2º, b, afirma: Ensino doméstico, aquele que é leccionado, no domicílio de aluno, por um familiar ou por pessoa que com ele habite.
A ANED (Associação Nacional de Educação Domiciliar) que é uma associação que reúne pais, educadores e interessados no desenvolvimento e prática do ensino doméstico no Brasil. Segundo a ANED:
[...]A Educação Domiciliar ocorre quando os pais assumem por completo o controle do processo global de educação dos filhos. [...] Portanto, a Educação Domiciliar é uma modalidade de educação, na qual os principais direcionadores e responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem são os pais do educando (aluno) [...]. (ANED, 2017)
Em outra fonte temos a definição em relação ao ensino doméstico: “O homeschooling é o ensino doméstico ou domiciliar em que a educação formal do aluno fica a cargo de um parente ou pessoa de seu convívio familiar em substituição à educação provida instituição formal de ensino”. (GUIMARÃES, 2017)
Vieira segue este mesmo raciocínio sobre a definição de ensino doméstico, para ele a educação doméstica/ domiciliar ocorre em casa, essa prática pode ser desenvolvida pelos pais ou responsáveis, assim pode ocorrer a delegação de terceiros ou não para a realização desta atividade. (VIEIRA, 2012)
Nesta modalidade de ensino os pais assumem o papel principal da educação, ao contrário do que ocorre na situação atual, onde o Estado tem a função ativa no processo educativo. Na prática há uma retomada desta atividade, agora não só as questões morais são dirigidas por estes, como afirma a ANED:
[...] Os pais ou responsáveis deveriam ter a responsabilidade de ensinar valores, costumes, hábitos, moral e crenças, ou seja, eles fariam uma parte da educação dos filhos. A outra parte, que seria o que chamaremos aqui de educação acadêmica, ou instrução formal, ficaria a cargo de instituições próprias, que chamamos escolas. Em outras palavras, os pais contratam ou delegam essa parte da educação dos filhos a profissionais que supostamente estariam mais capacitados para esse tipo de ensino, ou seja, os pais terceirizam essa parte da educação dos seus filhos [...]. (ANED, 2017, p.02).
Ou seja, houve em certo momento do desenvolvimento educacional a terceirização do processo educativo, os pais repassaram esta atividade para aqueles que teoricamente saberiam mais ou eram mais tecnicamente capacitados, restando-lhes questões morais e éticas a serem passadas dentro do lar. Como o movimento ao retorno do ensino doméstico este quadro tem-se modificado.
SITUAÇÃO DE O ENSINO DOMICILIAR PELO MUNDO
O processo de “desescolarização” tem-se acelerado no Brasil, segundo dados da ANED (Associação Nacional de Ensino Domiciliar) entre os anos de 2011 e 2016 houve um crescimento percentual de 916%, um número significativo para um país acostumado com método de ensino regular escolar. O crescimento assustador da prática que é permitida em 63 países também vem conquistando famílias pelo Brasil, estima-se que 15 mil crianças no país tenham a casa como sala de aula, segundo ANED. (VIEIRA, 2012)
É nos Estados Unidos que se concentra o maior número de crianças submetidas ao ensino domiciliar, lá o termo para designar deste método de ensino é homeschooling. Por enquanto não fora julgado nenhum caso relacionado ao ensino domiciliar, porém nos EUA é defendida o direito dos pais de escolherem um método alternativo para educação dos filhos, obviamente fundamentado na primeira emenda “Cláusula do livre Exercício”. (ANDRADE, 2017).
Na Europa o cenário muda bastante com países em que a prática é legal e regulamentada, e países onde a prática foi considerada ilegal pelo governo. Por exemplo, na comunidade belga de língua holandesa e francesa, suas respectivas constituições permitem aos pais educarem seus filhos em casa, porém o governo financia inspeções de tempos em tempos para avaliar as crianças, o material, depois de resultados sucessivamente negativos os pais são obrigados a matricularem os filhos. (ANDRADE, 2017)
Na Dinamarca a situação não é muito diferente, segundo a constituição deste país, os pais são responsáveis legais pela educação dos filhos, devem apenas informar ao município que a criança estuda em casa, indicar endereço e nome da pessoa que ensina em casa, anualmente as crianças fazem provas para avaliar os conhecimentos devendo alcançar médias compatíveis com o estipulado pela lei deste país, depois de resultados não satisfatórios o inspetor retorna três meses depois, se os resultados negativos continuarem, os pais serão obrigados a matricular os filhos na rede de ensino. (ANDRADE, 2017)
Na Inglaterra a situação muda, os pais também são responsáveis pela educação dos filhos, que deve ser realizada integralmente, de forma adequada, sendo que a frequência escolar não é obrigatória, os pais não são obrigados a prestar nenhum tipo de informação, a não ser que o Estado seja forçado a acreditar que a criança não está recebendo educação de qualidade, assim eles podem exigir mais informações.
Em contrapartida, a Alemanha é restritiva com relação ao ensino doméstico, devido ao fato de a escolarização ser regida a nível federal, não é permitida a educação em casa, exceto algumas exceções, a falta das crianças à escola pode gerar multas, prisões e perda do poder familiar. A Holanda segue um ritmo parecido, segundo as leis do país, o homeschooling não é um método adequado para educação das crianças, existindo exceções, como é caso de em determinada localidade não existirem escolas que professem a religião daquela família, a uma determinada distância considerável. (ANDRADE, 2017)
É visível que não existe um padrão de regulamentação para ensino doméstico, isso varia de país para país, saindo da liberdade quase absoluta como é o caso da Inglaterra, para uma proibição com raras exceções como ocorre na Holanda. De qualquer forma existe previsão, contrária ou a favor, de forma a permitir o livre exercício do ensino em casa e o respeito aos princípios constitucionais que tem norteado o direito dessas famílias e o acesso à educação de qualidade.
No Brasil essa situação é complicada, uma vez que não existe uma lei regulamentando o ensino doméstico no país, e a Constituição que deveria garantir o exercício desta liberdade individual é silente. Assim, a família no Brasil toma um lugar de coadjuvante no processo educativo, porém ainda há projetos no legislativo, e a própria ação a ser julgada no STF, que será tratada mais a diante.
3 - ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS AO ENSINO DOMÉSTICO
O mais atual e emergencial é a pandemia e o dever de preveler o interesse e melhor tratamento educacional, mental e físico do menor, ou seja, seu bem-estar completo, o que inclui aulas presenciais e reconhecimento pelo MEC.
Certamente que não é sem motivos que ao redor do mundo cresce o número de famílias que utilizam esse método de ensino para educar seus filhos, obviamente que os argumentos são variados, de forma que nem sempre os setores da sociedade concordam entre si.
A escola não é apenas um lugar onde se passa conteúdo, matemática, português, história, são passados valores éticos e morais que seguirão aquele individuo pelo resto da vida ou pela maior parte dela. Para alguns o ensino doméstico pode ser nocivo, uma vez que utilizam como argumento o possível isolamento social que a criança sofreria e as sérias consequências psicológicas. Essa ideia também é contraposta a pesquisas realizadas que afirmam ser a educação na faixa de idade dos 8 aos 12 anos desnecessária, inclusive podendo ser prejudicial para o desenvolvimento intelectual e psicológico da criança. (MOREIRA, 2008)
Como afirma Andréa Vieira, são muitos os argumentos que utilizam para se contraporem ao ensino doméstico, como: A vivência com a família não possibilitará o completo desenvolvimento da personalidade da criança; a escola é a única que possibilitará a convivência com outras pessoas, inclusive de idades diferentes; crítica de que a socialização adequada para criança só pode ser oferecida pela escola, de forma a ficar claro que boa parte da argumentação fica no campo social e pedagógico.(VIEIRA, 2012)
Enquanto que os argumentos contrários na maioria das vezes ocupam um campo sócio pedagógico, os argumentos favoráveis são mais diversificados, perpassando o campo ideológico, religioso, político, e da segurança, porém como afirma Luciana Barbosa em sua tese de pós-graduação, a argumentação mais utilizada é que a escola não satisfaz a necessidade moral das crianças e adolescentes. (BARBOSA, 2013, p.116)
Stacey Edmonson apud Barbosa (p.117, 2013) entende que há duas perspectivas teóricas que pelo qual os pais utilizam como razão de escolha, a primeira tem a ver com a abordagem do ensino, em casa a criança terá um ensino adequado às suas necessidades, na escola entretanto a criança deve se adaptar àquele tipo de abordagem, de ensino. A segunda tem a ver com a base ideológica, em casa a criança uma educação baseada nos princípios morais norteada pela religião professada por si e sua família.
Outro argumento utilizado pelos pais é a péssima qualidade do ensino público, assim os pais acabam sendo compelidos a retirar seus filhos e ensinando-os em casa. Constantemente os pais se sentem capazes de dar uma educação de qualidade, além da falta de recursos que afetam escolas no caso de crianças com algum tipo de deficiência. (BARBOSA, 2013, p.117)
Então se compreende que existem diversos argumentos de pessoas contrários e a favor do ensino doméstico, que devem ser avaliados de forma atenta ponderando aquilo que for melhor para a criança, porém nem sempre os argumentos se encaixam a todo e qualquer caso, existem particularidades que também devem ser vistas, afinal de contas o movimento do ensino em casa é mundial.
3 O ENSINO DOMÉSTICO E A POLÊMICA DO ABANDONO INTELECTUAL
Uma das argumentações utilizadas por aqueles que não concordam com a prática do ensino doméstico é que esta configuraria o tipo penal do art. 246 do CP, o abandono intelectual, que basicamente seria o deixar de prover à instrução primária aos filhos em idade escolar sem justa causa.
Como já mencionado acima na parte conceitual, no ensino doméstico a criança é ensinada em casa, não há vínculo com a escola, sejam públicas ou privadas, os pais são os responsáveis principais por passar o conhecimento aos filhos, dirigindo-lhes a educação, instrução moral e ética para viver em sociedade. Cabe, porém observar que a doutrina é divergente neste sentido, alguns autores tendem a compreender como crime e outros não.
Muitos autores quando comentam o art. 246 do Código Penal não aprofundam no assunto, se eximem de falar sobre o ensino doméstico, não por ser polêmico, talvez por ser até então pouco relevante, já que a prática não é muito conhecida, geralmente ficam numa superficialidade apenas em classificar o crime, objeto, bem tutelado e as situações mais corriqueiras.
Não há a configuração do abandono intelectual, quando a educação é ministrada em casa, porém em decorrência do local em que se encontram. Para Bittencourt, não é qualquer motivo que irá justificar o ensino doméstico em casa, mas, por lógica, a pandemia é um bom e nobre motivo.
Luiz Regis Prado também discorreu sobre o assunto polêmico à luz do direito penal, afirmando sobre a justa causa, que basicamente seriam as causas de intransponível dificuldade de acesso à escol: ou seja, a pandemia se enquadra. O Mec tem que reguoamentar o ensino doméstico, urgente, volte as aulas ou não. Direito de pais e crianças.
Ante ao exposto, percebe-se que eles tendem a considerar que o ensino doméstico (homeschooling) não configuraria o crime de abandono intelectual. Os pais aqui não realizariam as elementares do tipo, de forma a se considerar como crime tal prática.
Ademais, as crianças não são simplesmente retiradas da escola, ficando sem estudar, muito pelo contrário, realizam com afinco seus estudos em casa, sob os olhos atentos e cuidadosos dos pais. Para tanto, é forçoso considerar criminoso um pai e uma mãe, que por zelo e amor ensina os filhos em seus próprios lares, visando um futuro digno, um crescimento saudável, para exercerem suas respectivas funções dentro da sociedade.
5. A EDUCAÇÃO DOMICILIAR FOI VEDADA PELO STF?
Os direitos fundamentais fazem parte o conjunto de direitos inerentes ao ser humano, cabendo ao Estado permitir o livre exercício destes, como ensina Moraes (2014), “o Estado de Direito caracteriza-se por apresentar: reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais incorporados à ordem constitucional” além de positivá-los em seus diplomas legais.
A constituição conclama a família, a sociedade e o próprio Estado numa relação de solidariedade para garantir a jovens e crianças o direito à educação, a instrução, para transformá-los em cidadãos aptos no convívio social e ao respeito às diferenças em um país tão plural, porém muitas vezes o Estado/Escola tem falhado.
Não existe uma briga entre o Estado e a família, não são opostos. Mas ambos caminham juntos para o progresso da nação, porém é importante salientar que o Pacto de São José da Costa Rica do qual o Brasil é signatário em seu art. 12.4, afirma que cabe aos pais o direito de escolha para que recebam a educação religiosa e moral conforme as suas próprias convicções, garantindo um direito de preferência aos pais e tutores em detrimento do Estado.
Dentro desse contexto surgem vários argumentos contra e a favor. Unns entendem que prevalece o Estado, outros que as garantias individuais da criança e família prevalecem sobre o Estado.Não se trata de uma “queda de braços” para ver quem é mais forte, a individualidade ou o Estado, não se quer aqui eliminá-lo das vidas das crianças. Sabe-se muito bem que os Estados Democráticos têm um compromisso com seus indivíduos de forma a proporcionar a estes que possam vir a ser melhores cidadãos.
Ocorre que, em setembro o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) negou provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 888.815, com repercussão geral, recurso este que questionava a “Possibilidade de o ensino domiciliar (homeschooling), ministrado pela família, ser considerado meio lícito de cumprimento do dever de educação, previsto no art. 205 da Constituição Federal.”, desta forma, o ensino domiciliar seria uma forma lícita do cumprimento da obrigação de prover a educação dos filhos.
A fundamentação é o fato de não haver lei, norma que regulamente a matéria. Nada foi decidido quanto a um momento de pandemia e nem impediu o MEC de autorizar o ensino em casa. Portanto, não foi vedado pelo STF.
CONCLUSÃO
Diante é possível concluir que:
1. não foi vedado cadores, outros pais de associações específicas para este assunto ou até mesmo professores particulares que ensinam nos lares, ou seja, varia conforme a necessidade de cada família.
2. O ensino doméstico tem viabilidade legal e técnica, ainda mais na pandemia, sem prejuízo da urgência da volta às aulas.
Nota. Este texto é mera atualização e resumo do artigo que foi escrito com Alex Macedo, derivado de nossa pesquisa no grupo de iniciação científica que mantínhamos na UNIJORGE, e cujo resultado foi publicado, originalmente, na revista SEARA JURÍDICA, EM 2018.
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