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STJ valida retrocesso democrático em processo administrativo ambiental

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Georges Humbert, advogado, professor, pós-doutor em direito e democracia (Universidade de Coimbra), doutor e mestre em direito do estado (PUC-SP) e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Estado – IBRADES


Segundo amplamente noticiado, inclusive pela sua própria página oficial, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a validade do processo administrativo que levou à aplicação de multa ambiental pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) após a intimação do infrator, por edital, para apresentação de alegações finais, conforme o acórdão no REsp 2.021.212. Tal decisão contraria longa jurisprudência do STJ na matéria, a melhor doutrina, a Constituição, a lei e a democracia.


A justificativa do STJ para a mudança de posição é que, como a penalidade não foi agravada pela autoridade julgadora, o colegiado entendeu que a comunicação processual ocorreu de acordo com a redação então vigente do Decreto 6.514/2008 – que dispõe sobre infrações e sanções ambientais. Com esse entendimento, a turma julgadora determinou o retorno dos autos à instância de origem para que a execução fiscal da multa tenha continuidade.


Contudo, a intimação por edital para apresentação de alegações finais contraria norma expressa da Lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da administração pública federal, bem como, valida regulamento como fosse lei, pois que o Decreto 6.514/2008, exorbitava o poder regulamentar. Assim, deve todo processo respeitar o direito da Recorrente de, antes de ser multada, mediante decisão desse órgão ambiental, apresentar defesa, produzir prova, inclusive pericial, e apresentar alegações finais, consoante arts. 3°, inciso III e art. 38.


O Art. 38 não deixa dúvidas de que o interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo.


Como fará isso sem ser regularmente intimado no endereço que consta do processo ou por seu Advogado?


O art. 26 da Lei de Processo Administrativo estabelece ser dever da Administração intimar, pelas vias ordinárias, não por edital, os interessados sobre decisões e diligências realizadas, dando-lhes ciência. Isto, inclusive, vale para qualquer ato que acarrete ônus, deveres, sanções ou restrições aos interessados (art. 28). Estas regras valem também para o processo civil e processo penal, aplicáveis ao processo administrativo sancionador, menos para o novo entendimento do STJ.



Ocorre que, egundo o velho entendimento do próprio STJ, antes do retrocesso democrático aqui debatido, citando Acórdão do TRF6, a pena de multa não pode prescindir do direito de defesa e contraditório prévio:


ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. IBAMA. FISCALIZAÇÃO. ESTOQUE DE MADEIRAS NATIVAS SEM LICENÇA DO ÓRGÃO AMBIENTAL. PUNIÇÃO ADMINISTRATIVA. ... Na aplicação da penalidade, a autoridade administrativa deverá observar a gravidade do fato, os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação de interesse ambiental, bem como a situação econômica do infrator, no caso de multa (art. 6º, I, II e III, da Lei n. 9.605⁄1998... a aplicação da penalidade ... do autuado não prescinde de procedimento administrativo prévio, que assegure ao infrator o direito de ampla defesa e contraditório (artigo 70, § 4º, da Lei n. 9.605⁄1998). (AMS 2008.39.01.000585-0⁄PA)

 

E não diga-se que  não há prejuízo em não ser oportunizada as Alegações Finais, porque sempre o haverá. Com efeito, é direito do acusado, seja em esfera administrativa ou judicial, falar por último, depois da acusação e imputação. É a imprescindível e inegável oportunidade da parte de, sabendo de tudo que consta no processo, influenciar a decisão final, talvez com mais qualidade e efetividade do que a própria defesa anterior, pois já instruído e finalizado tudo mais que poderia constar do processo.


Tanto é que a Lei 9.784/99, em seu art. 27 garante ainda que o interessado não tenha apresentado defesa ele pode discutir todas as matérias nas alegações finais, tudo isto com base no devido processo legal formal, mas, sobretudo, no material ou substantivo, realçado à garantia fundamental aos direitos individuais fundamentais, nos termos do art. 5° da Constituição. As alegações finais não é qualquer ato processual, a ser desprezado ou angularizado por mero edital, mas sim o ato mais relevante para a defesa.


Tal tema é tão caro que, da leitura de toda a doutrina constitucional, administrativa e mesmo a especializada em direito ambiental, se extrai, em resumo, que a intimação pessoal e regular, como regra geral por Aviso de Recebimento, para a apresentação de alegações finais é um direito fundamental imprescritível e irrenunciável da parte autuada, e um dever-poder da Administração Pública, não podendo a sua inobservância ser considerada um vício qualquer ou direito condicionado a suposta prova de que houve prejuízo ou não à parte, pois, além de ser um momento processual ultra relevante, como demonstrado, trata-se de uma exigência legal expressa da lei específica do processo administrativo, civil e penal, portanto triplamente reforçada, que não pode um mero decreto, muito menos uma legislação de direito material, alterar ou suprimir, mesmo porque, com uma decorrência dos princípios do contraditório e da ampla defesa, tem essência de cláusula pétrea. E isto é tão claro em nosso sistema constitucional e em todas as democracias que, em 2019, mesmo sem lei, o STF estabeleceu que réus delatados têmo direito de falar por último nos processos em que também há réus delatores.


O estado democrático e de direito, alicerçado no direito fundamental constitucional ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa deve anteceder a aplicação da pena, conforme prescreve o art. 5°, da Constituição Federal, isto é, antes mesmo da aplicação de qualquer sanção, como a multa ambiental. Por isto, imprescindível é a intimação regular e pessoal, ou pelo advogado, regra geral de todo e qualquer processo sancionador em uma democracia de verdade. O edital é exceção, aplicável apenas à parte que não tenha paradeiro certo e determinado, somente após esgotadas todas as tentativas de sua localização.


Daí porque, forçoso concluir que o acórdão no REsp 2.021.212 do STJ se afigura um retrocesso democrático ao processo administrativo ambiental e um ato jurídico ilegal e inconstitucional, a ser revisado pelo próprio STJ ou pelo STF, quando provocado.

 

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