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Foto do escritorGeorges Humbert

Inconstitucionalidade das infrações ambientais no Brasil

Desde 1988, no Brasil, não é - ou não deveria ser - juridicamente possível a incidência de inúmeras infrações ambientais, de apuração do Poder Executivo, via o denominado processo administrativo sancionador, ao menos no nível de competência da União, ou seja, quando o ato causador de desequilíbrio ambiental for de impacto nacional. Com efeito, há uma lei que trata apenas genericamente do tema, apresentando, em detalhes, apenas o regime jurídico das sanções administrativas incidentes na espécie, a denominada Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998). Para disciplinar a matéria, foram editados o Decreto nº 3.179/1999, revogado pelo Decreto nº 6.514/2008, atualmente em vigor.


Diante da omissão legal, o Decreto 6.514/08 trouxe diversas inovações à ordem jurídica e, ao ensejo de estar embasado na suposta atividade meramente regulamentar da disposição altamente genérica do art. 70 da citada lei, criou, enumerou, individualizou originariamente as condutas típicas infracionais sujeitas às sanções administrativas, usurpando o que caberia somente à lei.


Cite-se, neste contexto, as infrações previstas nos artigos 28, 30 a 33, 37, 38, 41, 51, 53 a 55, 58, 65, 68, 69, 71, 76, 78, 80, 81, 84 a 90 do famigerado Decreto, todas crias deste, mas ausentes da lei originária que o decreto deveria fielmente regulamentar. Mas, à toda evidência, foi infiel e além da lei, o que não poderia, ao menos sem violar diversos princípios e direitos fundamentais republicamos.


Ora, a Constituição determina, como direito individual fundamental a segurança jurídica e, para garantir este interesse, impõe que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", consoante os temos do artigo 5º, inciso II. Trata-se do que se convencionou nomear de princípio da legalidade em sentido amplo. Há, ademais, a previsão do denominado princípio da legalidade em sentido estrito no âmbito da administração pública, nos termos do artigo 37, segundo o qual a administração somente pode fazer aquilo que está previsto em lei.


Em suma: nem o administrado pode ser responsabilizado e sancionado administrativamente sem base em lei, e nem o poder público pode impor sanções sem seguir um rito, previsão e predeterminações legais. Jamais em decretos que inovem ou estejam para além da lei, da sua fiel execução.


Se isso não bastasse para fulminar a constitucionalidade da exorbitante e ilegal disposição do Decreto em debate, o Artigo 84, também violado na espécie, deixou determinado de modo claro que: "compete privativamente ao Presidente da República: IV - Sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução".


Retoma-se, aqui, a lição comezinha do saudoso jurista Geraldo Ataliba: o Poder Regulamentar como a faculdade que ao Presidente da República - ou chefe do Poder Executivo, em geral, Governador e Prefeito - a Constituição confere para dispor sobre medidas necessárias ao fiel cumprimento da vontade legal, dando providências que estabeleçam condições para tanto. Sua função é facilitar a execução da lei, especificá-la de modo praticável e, sobretudo, acomodar o aparelho administrativo, para bem observá-la. E arremata: "legislar e regulamentar leis são funções que a Constituição pôs em regras de competência de um e outro poder." (ATALIBA, Geraldo. Decreto Regulamentar no Sistema Brasileiro. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 1969, p. 23).


No mesmo sentido é o ensinamento insuperável de Pontes, outro lumiar do direito: ?Regulamento é ato administrativo normativo, veiculado por decreto, expedido no exercício da função regulamentar, contendo disposições, dirigidas aos subordinados do editor, regulando (disciplinando) o modo de aplicação das leis administrativas, cuja execução lhe incumbe (MIRANDA, Pontes de. Comentários a Constituição de 1967 com a emenda nº1 de 1969. Tomo III. Rio de Janeiro: Forense, 1987).


Neste sentido, sustenta o festejado e emérito professor da PUC-SP, Celso Antônio Bandeira de Mello que "inovar que dizer introduzir algo cuja preexistência não se pode conclusivamente deduzir da ?lei regulamentada", verificando-se inovação proibida toda vez que não seja possível "afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada" (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ato Administrativo e Direito dos Administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 98).


Significa que, por violar preceitos fundamentais da república, elevados à condição de cláusulas pétreas (art. 60 § 4º) como a separação dos poderes (art. 1º), democracia representativa (art. 1º, 2º e 84, IV), segurança (art. 5ª) e legalidade (art. 5º, II e 37) da Constituição, entre outros, é grave e flagrantemente inconstitucional imputar infração ambiental administrativamente com base no único e geral art. 70 da Lei 9.605/98, que não tipifica e nem cria os atos e fatos típicos, apoiado nos diversos artigos do Decreto 6.514/08, que foi além da fiel execução da lei e inovam a ordem jurídica, criando e tipificando as infrações ambientais.


A inconstitucionalidade do referido diploma normativo impede que o poder público possa aplicar a responsabilidade administrativa ambiental e nada é feito quanto a isto. Inclusive a inconstitucionalidade.


Porém na prática, vem o famigerado decreto vem sendo aplicado, ao arrepio da lei, conforme defendem boa doutrina e o Superior Tribunal de Justiça.


Por todos, cite-se o que assevera o respeitável jurista Édis Milaré: "A incidência do princípio da legalidade, salvo disposição legal em contrário, não implica o rigor de se exigir que as condutas infracionais sejam previamente tipificadas, uma a uma, em lei, tal como ocorre no Direito Penal. Basta, portanto, a violação de preceito inserto em lei ou em normas regulamentares, configurando o ato como ilícito, para que incidam sobre o caso as sanções prescritas, estas, sim, em texto legal formal. [...] Este é o caso da Lei 9.605/1998 que, de forma bastante genérica e ampla, considerou infração administrativa, "toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente". Trata-se de um tipo infracional aberto, que possibilita ao agente da Administração agir com ampla discricionariedade, ao buscar a subsunção do caso concreto na tipificação legal adotada, para caracterizá-lo como infração administrativa ambiental. (MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: A gestão ambiental em foco. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 893-894.)


No mesmo sentido é a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde colhe-se, por exemplo, do Recurso Especial (REsp) 1145648 que, mesmo que descrita em Decreto ?a infração ambiental cometida em combinação com os artigos 70 e 72 da Lei nº 9.605/98 encontra amparo no Princípio da Legalidade que justifica a imposição da multa imposta pelo IBAMA, não havendo falar, pois, em ilegalidade qualquer.


Pelo afirmado, em nome de se restabelecer o estado de constitucionalidade e para não se deixar o meio ambiente sem a completa tutela jurídica, nas três esferas previstas pelo § 3° art. 225 da Constituição, o referido decreto precisa e deve ser convertido em lei, ainda que seja pela a não recomendável via da medida provisória.


Até que isso ocorra, o Supremo Tribunal Federal (STF), guardião e detentor da última palavra em matéria de solução de conflitos entre atos infraconstitucionais e a Constituição, deverá reconhecer, em repercussão geral, a inconstitucionalidade da responsabilização administrativa ambiental no âmbito da União via Decreto 6.514/08, ou, por analogia e ante a lacuna legislativa existente, admitir a imputação desta apenas com base nas mesmas hipóteses e tipos penais elencados como crimes ambientais na Lei 9605/98, pena de violação frontal à preceitos constitucionais, elevados à condição de cláusulas pétreas (art. 60 § 4º) da separação dos poderes e da democracia representativa (art. 1º, 2º e 84, IV), da segurança (art. 5ª) e da legalidade (art. 5º, II e 37), base do estado democrático de direito em que se constitui a República Federativa do Brasil.

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