O Direito é ordem da conduta humana. E mais: é ordem coativa,[1] formada por um esquema escalonado de regras prescritivas — as normas jurídicas.
Diante desta noção, alertou-se para a diferença entre Direito Urbanístico e o Urbanismo. Mas isto não significa que entres estas não haja qualquer relação. Ao contrário. A evolução histórica e os processos de formação são correlatos.
E não é só. Ambos decorrem de um fato comum: o fenômeno urbano.
Trata-se de fenômeno hodierno.[2] Inicia-se com a Revolução Industrial. Ganha corpo a partir da segunda metade do século XX. Findas as grandes guerras, o êxodo rural acentua-se e a vida nas grandes cidades passa a ser objeto de desejo da população rural, que vê na indústria e no setor de serviços a oportunidade para crescer profissional e financeiramente, usufruindo das vantagens e comodidades supostamente fornecidas pela “vida moderna”.
Assim, já na década de setenta, as metrópoles passam a concentrar grande parte da população mundial, números que, a partir de então, não pararam de crescer. Nos dias atuais, a densidade demográfica nas grandes cidades brasileiras chega a atingir a impressionante marca de 80%[3] da população do país das pessoas vivendo nos grandes centros urbanos.
Disto deriva uma série de questões sociais decorrentes da descontrolada concentração populacional em massa.
A vida bucólica e saudável até então vigorante, especialmente nas zonas rurais, é drasticamente substituída pela vida nos grandes centros urbanos que se formam.
Conflitos de interesses passam a ser cada vez mais corriqueiros, com destaque para problemas ligados à moradia, saneamento, emprego e circulação dos citadinos.
Ante esta nova realidade, o Estado passa a intervir com grande intensidade para promover a adequada organização dos espaços urbanos que iam se formando de forma descontrolada e em larguíssima escala.
Referida intervenção se dá mediante a adoção de políticas públicas próprias, planejamento local e uma série de outras atividades afins, as quais se convencionou denominar como Urbanismo, “buscando determinar a melhor posição das ruas, dos edifícios e obras públicas, de habitação privada, de modo que a população possa gozar de uma situação sã, cômoda e estimada”.[4]
Estes fatos, esse processo de evolução da sociedade moderna e sua repercussão socioeconômica não poderiam ficar à margem do Direito.
O Direito é fenômeno histórico-cultural, realidade ordenada, ou ordenação normativa da conduta segundo uma conexão de sentido.[5]
Vale dizer, suas normas estatuem atos de coação atribuíveis à comunidade jurídica quando uma situação de fato é juridicamente relevante, porque, se não regulada, pode trazer conseqüências nocivas à sociedade.[6]
Nessa conjuntura é que, a partir de meados do século passado, passam a ser editadas em todo o mundo, ainda que de forma gradual, normas jurídicas de cunho urbanístico para regulamentar a matéria, com o intento de promoção da paz social nos centros urbanos.
Conforme nos lembra Daniela Libório Di Sarno,
(...) regras urbanísticas simples, esporádicas, já eram editadas na Idade Média. Com a Idade Moderna e o amadurecimento do Estado na Idade Contemporânea, as regras urbanísticas também evoluíram. Isto porque o Estado reposicionou-se, enfocando como seu principal interesse a sociedade e começou a exigir do indivíduo igual postura. As normas jurídicas urbanísticas encontraram, nesse contexto, a fomentação suficiente para crescer, pois, na essência, são sempre voltadas para o bem-estar da coletividade e para o interesse público.[7]
Surge, então, o Direito Urbanístico que nada mais é do que “numa definição singela, o conjunto de normas disciplinadoras do ordenamento urbano”.[8] Não tem por objeto a atividade de organização das cidades, mas, sim, o conjunto de normas que a disciplina.
Define-se como o ramo do Direito Público que tem por objeto as normas jurídicas — regras e princípios — que regulam e disciplinam a atividade urbanística[9] nos espaços habitáveis, visando a plena consecução das funções sociais da cidade — habitação, trabalho, lazer e circulação.
[1] Nas palavras de Hans Kelsen: “Dizer que o Direito é uma ordem coativa significa que as suas normas estatuem atos de coações atribuíveis à comunidade jurídica”. KELSEN. Teoria pura do direito, p. 36.
[2] A urbanização liga-se diretamente com a formação das cidades. Contudo, o fenômeno urbano no sentido aqui disposto, com a alta concentração demográfica em espaços bem delimitados, apenas se dá a partir do século XIX, a despeito de as primeiras cidades terem origens que remontam aos anos 3.500 a.C, consoante referiu-se Aristóteles, nos seguintes termos, em Política: “Quando várias aldeias se unem numa única comunidade, grande o bastante para ser auto-suficiente (ou para estar perto disso), configura-se a cidade, ou Estado — que nasce para assegurar o viver e que, depois de formada, é capaz de assegurar o viver bem”. ARISTÓTELES. Política, p. 45.
[3] Cf. IBGE. Atlas do Censo Demográfico 2000. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/pdf/29122003atlascenso.pdf>. Acesso em: 03 out. 2008.
[4] É a acepção de Leopolo Mazzaroli apud MUKAI. Temas atuais de direito urbanístico e ambiental, p. 14.
[5] SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 33. Também, neste sentido, VILANOVA. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo, p. 223.
[6] Ver KELSEN. Teoria pura do direito, especialmente o Capítulo I.
[7] DI SARNO. Elementos de direito urbanístico, p. 8.
[8] FIGUEIREDO. Disciplina urbanística da propriedade, p. 32.
[9] O termo “atividade urbanística” aqui é utilizado no mesmo sentido explicitado por José Afonso da Silva, qual seja, como “uma função do Poder Público que se realiza por meio de procedimentos e normas que importam transformar a atividade urbana”. SILVA. Direito urbanístico brasileiro, p. 71.
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