Direito Ambiental do preguiçoso
- Georges Humbert
- 12 de abr.
- 9 min de leitura
Por Georges Humbert
Advogado e Professor, com duas décadas de experiência, mais de 40 livros e de 500 pesquisas publicadas. Pós-doutor em direito pela Universidade de Coimbra – Portugal. Doutor e mestre em direito do estado pela PUC-SP. É presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade – IBRADES, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e membro do Conselho da Reserva da Biosfera do Estado da Bahia. Foi Superintendente de Patrimônio da União, Gerente de Projetos do Ministério do Meio Ambiente, Assessor Especial Secretaria-Geral da Presidência da República, Superintendente de Políticas Ambientais de Goiás, membro do CONAMA, do Conselho de Respostas a Desastres do Conselho de Governo da Presidência da República, do da Comissão de Defesa do Meio Ambiente da OAB-BA, da Comissão de Transparência da OAB-BA, Conselho de Meio Ambiente da FIEB e da Câmara Florestal do Brasil e da Bahia.
Imagine um grave dano ambiental. O responsável por fiscalizar e punir agora pode esperar para resolver isso daqui a mil anos. Ou pode segurar, para beneficiar um amigo - prefeito, ou manter um inimigo - ex-prefeito, em suas rédeas, por exemplo.
É que, depois de duzentos anos e sem parãmetro igual no mundo democrático, o novo STF, pós 2010, ativista e usurpador do poder executivo e legislativo, legislou, mais uma vez (como no crime de homofobia, de vaquejada e na imprescritibilidade do dano ao erário derivado de improbidade) e criou a imprescritibilidade do dano civil ao erário.
Se prepare. Se você herdou uma fazenda de seu avô e seu tataravô desmatou para o plantar o feijão que te alimenta, você, ou seus filhos e netos ou bisnetos, poderão responder e pagar por isso, sem chance de defesa (não conhecem os fatos e provas).
Como ensina o maior jurista e constitucionslista do país, Ruy Barbosa, o sistema jurídico brasileiro não admite nenhuma imprescritibilidade, salvo as que clara e expressamente já estão disciplinadas na Constituição, como já sustentado em artigo anterior que integra o livro “Direito Público –
Estudos e Pareceres, Ed. Fórum, 2011”, em coautoria com o prof. Márcio Cammarosano, pelos seguintes fundamentos a seguir sintetizados:
(i) a Constituição, quando declara a imprescritibilidade de ações, sempre o faz de forma expressa, o que não é o caso das ações de ressarcimento ao erário;
(ii) outras lesões, danos e prejuízos ao erário são expressamente sujeitas ao prazo de prescrição – como as que podem se dar no caso de não pagamento dolo e de má-fé do tributo devido e as de ilícitos civis, como agora já reconhecido pelo STF, ao ensejo da repercussão geral 666;
(iii) nenhum direito de ação pode ser imprescritível, por via de interpretação extensiva de princípios jurídicos, como o do poluidor-pagador, ao menos sem grave e clara ofensa ao direito fundamental à segurança jurídica;
(iv) conforme técnica reconhecida de hermenêutica constitucional, considera-se inconstitucional a interpretação ampliativa de uma restrição, com o fim de garantias individuais como prescrição, decadência, coisa julgada, ato jurídico perfeito. Portanto, não cabe ao legislador infraconstitucional ou ao aplicador da norma criar a possibilidade de se eternizar a hipótese de uma lide civil ambiental
ser levada à apreciação do Poder Judiciário a qualquer tempo, ainda mais quando essa inércia deriva de omissão do Poder Público, que, por princípio, tem o dever de atuar com eficiência e
promover a razoável duração dos processos;
(v) por fim, diante da inexistência de lei específica regendo a matéria da prescrição da ação de reparação de danos ao meio ambiente, aplicar-se-ia o quanto disposto pelo microssistema de tutela do interesse público e dos direitos difusos e coletivos, composto pela Lei de Ação Popular, da Ação Civil Público e da Lei de Improbidade Administrativa e Código de Defesa do Consumidor, em detrimento de um criacionismo de novas regras via ativismo judicial ou qualquer outra forma que não seja o devido processo legislativo. Consequentemente, entende-se como de cinco anos o prazo prescricional aplicável às ações civis ambientais públicas de reparação ou ressarcimento.
O início desta aberração jurídica, além de romper com a história de defesa constitucional do STF e derivar do autoritário ativismo judicial, que também mancha e desmerece a corte secular, se deveu por pressão julgamento do RE 852475, com repercussão geral reconhecida, e que trata da prescrição das ações de ressarcimento por danos ao erário, sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes.
O Relator votou pela prescrição, e propôs a seguinte tese:
"A pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos e terceiros pela prática de ato de improbidade administrativa devidamente tipificado pela lei 8.429/92 prescreve juntamente com as demais sanções do art. 12, nos termos do art. 23, ambos da referida lei, sendo que, na hipótese em que a conduta também for tipificada como crime, os prazos prescricionais são os estabelecidos na lei penal."
Durante seu voto, o Relator, Min. Alexandre de Moraes afirmou que “a Constituição adotou como regra a "prescritibilidade" e que “as únicas exceções são de ordem penal, como por exemplo nos crimes de racismo”. Segundo o Relator, “o Estado não tem arbítrio sancionador ilimitado no tempo, não havendo previsão constitucional de imprescritibilidade de sanções civis ou administrativas”, bem como que “a imprescritibilidade, além de violar a segurança jurídica, fere também a ampla defesa”.
O Ministro Barroso, acompanhando o Relator, registrou, ademais, que "onde a CF quis instituir a imprescritibilidade, ela o fez com linguagem
inequívoca".
Esses e outros argumentos pela prescritibilidade, no caso específico, como regra em nosso sistema jurídico, já haviam sido
lançados por ocasião de nosso artigo há quase dez anos (HUMBERT, G. L. H. Prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário - estudo de casos. Interesse Público. , v.55, p.202 - 211,
2009), e que consta, revisado, em livro em co-autoria com o professor Márcio Cammarosano (Cammarosano, Márcio; Humbert, Georges Louis Hage, Direito Público – Estudos e Pareceres. Belo Horizonte: Fórum, 2010).
Os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, acompanharam, a princípio, o voto de Moraes, com a divergência dos ministros Rosa Weber, Fachin, Celso de Mello e Carmen Lúcia. Porém, de forma inusitada e raríssima, mesmo, os ministros Barroso e Fux, mudaram totalmente de posição, ao final do julgamento, quando se encerrava para o placar de 7 X 4 a favor da prescrição, fechando, assim, em 6 x 5, pela não incidência da prescrição da ação de ressarcimento de dano ao erário decorrente de ato de improbidade, desde que doloso, isto é, intencional e de má-fé.
Assim, o Ministro Barroso, que havia registrado antes com acerto que "onde a CF quis instituir a imprescritibilidade, ela o fez com linguagem inequívoca", reapareceu no fim do julgamento,
afirmando que mudava de posição, pois “muitos argumentos que me foram trazidos, sobre as dificuldades, quando não impossibilidade de recuperação, muitas vezes de dinheiros desviados, em que há uma delonga administrativa e no processo penal, eu me convenço que como regra geral, a prescritibilidade, neste caso, não produz o melhor resultado para a sociedade”.
Já o Ministro Fux ao retificar, para pior, contra a democracia e a Constituição, o seu belo voto anterior, disse, por estranho e sem base juirídica, mas moral, que não considerava "consoante com os princípios e a postura do STF" que atos de improbidade administrativa ficassem "imunes à obrigação do ressarcimento".
Daí se extraem quatro argumentos para a singular mudança de votos: 1 - dificuldades de recuperação de verbas; 2 - o melhor resultado para a sociedade; 3 – princípios e posturas do STF; 4 – imunidade à obrigação de ressarcimento.
Como se verifica, sem maior esforço, nenhum dos argumentos é da ciência do direito, nem
da prática jurídica, muito menos previstos na Constituição ou nas leis. Pior ainda: nenhum dos argumentos é pertinente.
Isto porque, se não se consegue ter um mínimo de indícios e diligência para, em cinco anos, propor uma ação de cobrança, melhor encerrar as atividades das instituições jurídicas. Lembre-se: basta propor a ação que a prescrição fica suspensa!
Não precisa encontrar o dinheiro, o que deve ser feito durante o processo judicial, mediante contraditório e técnicas diversas, como cooperação internacional, quebra de sigilos, desconsideração da pessoa jurídica, responsabilização solidária e subsidiária, entre
outras.
Ademais, a inércia e insegurança jurídica, sem marcos temporais para se propor uma ação, não é o melhor para a sociedade. Esta clama por agilidade, celeridade, eficiência, eficácia e efetiva preservação e recuperação do meio ambiente verba pública, não uma carta branca para, a qualquer tempo e quando se quiser, ir atrás de corruptos e das verbas públicas que eles tenham desviado.
Melhor sorte não merece o discurso consentâneo aos princípios e posturas do STF. Primeiro que estes estão positivados na Constituição, não em casos concretos, não interferem nas regras de decisão de cada situação e interesse juridicamente protegido, mas em regras de processamento, bem não tem nada a ver com a prescrição ou não, até porque a prescrição é a regra e a não prescrição é a exceção, devendo estar, como já dito, expressa, sem depender de malabarismos de interpretação, como os que se assistiu.
Por fim, também sem guarida jurídica e fática o argumento de que a prescrição geraria uma imunidade a obrigação de ressarcimento,
mesmo porque este é um dever geral do direito brasileiro e mundial: aquele que causa o dano, tem o dever de reparar. A prescrição, é da lição mais básica do direito, não atinge o direito material, o dever ou a obrigação em si, diga-se, mas o direito de ação, justamente para que este não seja usado como arma de ataque, defesa,
perseguição ou impunidade.
Será que, na lógica e sistema Constitucional, o meio ambiente ou erário podem esperar eternamente, sem prazo, para que quem tem o dever de ação agir, para, a qualquer talante, serem recuperados e protegidos? O meio ambiente destruído e poluído, ou dinheiro desviado da corrupção podem esperar cem anos para ser cobrado?
A toda evidência, não, ao pelo direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, à moralidade administrativa, à segurança jurídica, suas garantias ao devido processo, formalmente com contraditório, ampla defesa, razoável duração do processo, e, materialmente, com atos, ações razoáveis e proporcionais (mil anos para porpor uma ação não é razoável e nem proporcional), todos do art. 5°, bem como do princípio da eficiência, que norteia a administração pública, expresso no art. 37, ambos da combalida Constituição que, a duras
penas e violações, completará 37 anos no próximo mês de outubro.
Ora, a Constituição determina, como direito individual fundamental a segurança jurídica e, para garantir este interesse, impõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, consoante os temos do artigo 5º, inciso II. Trata-se do que se convencionou nomear de princípio da legalidade em sentido amplo. Há, ademais, a previsão do denominado princípio da legalidade em sentido estrito no âmbito da administração pública, nos termos do artigo 37, segundo o qual a administração somente pode fazer aquilo que está previsto em lei.
Em suma: nem o administrado pode ser responsabilizado e sancionado administrativamente sem base em lei, e nem o
poder público pode impor sanções sem seguir um rito, previsão e predeterminações legais. Jamais em decisões de magistrado, contra a tradição e função do STF e de outras cortes supremas espalhadas pelo mundo, que inovem ou estejam para além da lei, da sua fiel execução.
Retoma-se, aqui, a lição comezinha do saudoso jurista Geraldo Ataliba: “legislar e regulamentar leis são funções que a Constituição pôs em regras de competência de um e outro poder." (ATALIBA, Geraldo. Decreto Regulamentar no Sistema Brasileiro. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 1969, p. 23).
No mesmo sentido é o ensinamento insuperável de Pontes, outro lumiar do direito: “Regulamento é ato administrativo normativo, veiculado por decreto, expedido no exercício da função regulamentar, contendo disposições, dirigidas aos subordinados do editor, regulando (disciplinando) o modo de aplicação das leis administrativas, cuja execução lhe incumbe (MIRANDA, Pontes de. Comentários a Constituição de 1967 com a emenda nº1 de 1969. Tomo III. Rio de Janeiro: Forense,
1987.)
Neste sentido, sustenta o festejado e emérito professor da PUC-SP, Celso Antônio Bandeira de Mello que “inovar que dizer introduzir algo cuja preexistência não se pode conclusivamente deduzir da ‘lei regulamentada’, verificando-se inovação proibida toda vez que não seja possível ‘afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ato Administrativo e Direito dos Administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 98).
Significa que, por violar preceitos fundamentais da república, elevados à condição de cláusulas pétreas (art. 60 § 4º) como a separação dos poderes (art. 1º), democracia representativa (art. 1º, 2º e 84, IV), segurança (art. 5ª) e legalidade (art. 5º, II e 37) da Constituição, entre outros, é grave e flagrantemente inconstitucional imputar imprescretibilidade por ato de magistrado, sem lei anterior que preveja e mais, contra duzentos anos de história do próprio STF.
A imprescribilidade, virou, ainda, uma carta branca ao estado e seus agentes para agir quando e como quiser, de forma atrasada, quando houver dano ambiental ou formos roubados por ímprobos.
Por derradeiro, não se pode olvidar que esse caso recobra, mais uma vez, o premente debate do ilimitado e, cada vez mais presente, exercício do poder de legislar pelo Judiciário, em detrimento do Congresso, também conhecido por “ativismo judicial” (expressão que remonta uma contradição, pois o judiciário é o poder inerte, por essência).
Daí se questionar, também: os Ministros que mudaram os votos com argumentos não jurídicos, mas morais ou políticos, jogaram para a plateia?
Fato é que, quem é leigo ou acusador intempestivo, vai comemorar e louvar como uma ótima mais essa decisão criativa – ou ativista - e fora dos termos Constitucionais, sem se importar com mais um rasgo na Constituição, justamente por quem deveria ser seu guardião.
E mais: não se importará com mais uma demonstração clara de que o STF não exerce a atividade julgadora, predominantemente. Tem feito leis e política.
A Imprescritibilidade de Reperação e de Ressarcimento Ambiental é mais uma jabuticaba brasileira, é ato antidemocrático, inconstitucional e contra a proteção do meio ambiente.
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