O Patrimônio Imobiliário da União tem papel essencial na estratégia de desenvolvimento do país na medida em que provê o insumo fundamental – espaço físico – para assentamento das ações e projetos de interesse público. Esse patrimônio, descrito no art. 20 da Constituição Federal, pertence a todos os brasileiros e é administrado pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), ligada ao Ministério da Gestão e Inovação.
Entre as competências da SPU incluem-se, entre outras, a incorporação e regularização do domínio dos bens; sua adequada destinação; além do controle e da fiscalização dos imóveis, conforme Constituição, Leis e Decretos. Entretanto, entre elas não está a de definir se uma área é urbana ou rural, para efeitos de cobrança de taxas, foro, laudêmio, como se demonstrará a seguir.
Importa, de logo, mencionar o teor da Lei 6.766/1979, em seu art. 53, prevê que "todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, do órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação permanente".
Em segundo lugar, se é o INCRA que detém competência, no âmbito da União, para aferir a natureza jurídica de um imóvel, quanto a vocação urbana ou rural, a competência prevalente para esta atribuição constitucional é dos Municípios, através do seu Plano Diretor de Desenvolvimento urbano. Fora disso, a declaração de área urbana ou rural sem ser via INCRA e lei municipal que institui o PDDU é ato inconstitucional, ilegal e abusivo, que causa prejuízo ao erário e deve ser objeto de responsabilização por quem deu causa. Isto porque, são claros os comandos dos artigos 30, inciso IX e 182 da CR/88.
Verifica-se, outrossim, do INCRA, o rito para a descaracterização para fins urbanos de imóveis cadastrados no SNCR é estabelecido pela Instrução Normativa nº 82/2015, art. 19 a 30 e, de acordo com o art. 20, deve ser feito requerimento de atualização cadastral, em virtude de descaracterização do imóvel para fins urbanos, pelo respectivo titular ou pelo Município de localização do imóvel, o que também não resta presente na hipótese dos autos.
Ademais, em caso de descaracterização da área total do imóvel, o INCRA envia notificação previa ao interessado, para que exerça o contraditório a ampla defesa, ao cartório de registro de imóveis e à prefeitura do município de localização da área, o que também não foi verificado na espécie. É vedado surpreender o titular do bem ou do uso e ocupação do mesmo, pena de ilegalidade e abuso de autoridade, além de violar princípios da administração, notadamente boa-fé, moralidade, publicidade, eficiência, legalidade e transparência, a ensejar, por quem viola, possível ato de improbidade administrativa.
Essa exigência, inclusive, é requisito pacífico, expresso e reconhecido pelo STJ:
AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1832117 - AM (2019/0242060-4) RELATOR : MINISTRO OG FERNANDES AGRAVANTE : MUNICÍPIO DE MANAUS PROCURADOR : DENIEL RODRIGO BENEVIDES DE QUEIROZ E OUTRO(S) - AM007391 AGRAVADO : MEMA PARTICIPAÇÕES E ADMINISTRAÇÃO LTDA ADVOGADOS : MÁRIO DA CRUZ GLÓRIA E OUTRO(S) - AM004013 ANDRÉ GUIMARÃES DA CRUZ - AM007549 BRUNO BARBOSA DOS REIS GLÓRIA - AM009432 DOUGLAS ALEIXO SANTOS DA CRUZ - AM009426 EMENTA TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PARCELAMENTO DO SOLO. ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO DO IMÓVEL. AUSÊNCIA DE COMUNICAÇÃO AO INCRA E AO CONTRIBUINTE. MODIFICAÇÃO DO ENTENDIMENTO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. O Tribunal de origem assentou que a municipalidade recorrente deixou de cumprir o quanto determinado pelo art. 53 da Lei n. 6.766/1979 e não comunicou ao contribuinte sobre a alteração da qualidade jurídica da área, que passou a ser urbana. 2. Alterar a conclusão a que chegou o Tribunal "a quo" implicaria o revolvimento do contexto fá2co-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 7/STJ. 3. Agravo interno a que se nega provimento. “Diante de todo o exposto, em comprimento de todas as exigências legais e formais, recomenda-se a revisão da natureza do imóvel, que no que tudo indica, este, possui natureza rural, embasando-se nas documentações e atual legislação, e jurisprudência aqui expostos. Portanto, recomenda-se que seja adotado os valores de referência da taxa de foro de natureza RURAL para o imóvel, como também a nulidade de aplicações de valores/débitos referentes a anos posteriores da Lei nº 241/2008 e Decreto Municipal nº 398 de 2008 (referente ao PDDU das zonas de Cairu/BA), na qual o princípio da anterioridade tributária não se aplica, já que o imóvel apresentou nos autos atividade econômica de cunho rural desde o princípio de sua ocupação.”
Vale ressaltar que o art. 182 da Constituição e a Lei Federal 10.257/01, autodenominada Estatuto da Cidade, determinam que seja o Município, via PDDU ou lei específica, que deve estabelecer as áreas urbanas, o que coaduna com a predominância do interesse e impacto local da matéria, ínsitos as competências cooperadas, comuns e concorrentes, dos art. 23, 24 e 30 da Constituição em matéria urbanística.
Dessa forma, cabe à lei municipal descrever o perímetro urbano, observados, no mérito e como meio de controle material de legalidade, os requisitos do § 1º, do art. 32 do CTN, que não é autoaplicável, consoante interpretação sistemática e conforme dada ao tema pela doutrina e pelos tribunais. A única exceção a esse critério geográfico é aquela prevista por decisão vinculante do STF, que conferiu ao Decreto-lei nº 57/1966, editado sob a vigência da ordem constitucional antecedente, o caráter de lei complementar restabelecendo a harmonia entre os entes federados, bem como, resolvendo a questão interna das Municipalidades que perderam a sua competência impositiva em relação a imóveis cultivados, situados nos perímetros urbanos dos Municípios.
Por esta razão, hoje é tranquila a jurisprudência do STJ quanto à competência da União para lançar o ITR sobre esses imóveis rurais ATÉ MESMO OS incrustados no perímetro urbano do Município, consoante se extrai, à guisa de exemplo, do teor dos Resp. nº 492.869, Resp. nº 738.628 e Resp. nº 1.112.646.
No âmbito da própria SPU, militam, em síntese, em favor desta correta tese: a) precedente do órgão central da SPU, na orientação contida na Nota Técnica da CGCAV nº 14125/2018-MP, na qual se lê que “III - Verificar junto ao plano diretor do município, se o imóvel em questão encontra-se em área denominada rural, fazendo o devido ajuste cadastral no SIAPA se necessário;” b ) Despacho SPU/BA-NUCIP nº 7902180, nos quais prevaleceu a posição similar a ora sustentada, ao consignar que "2. A definição da natureza do imóvel nos sistemas corporativos da Secretaria do Patrimônio da União- SPU é binária, ou seja, só se pode classificar o imóvel com dois valores possíveis, sendo eles rurais ou urbanos. Sua definição é de competência municipal e é disposto no plano diretor ou plano de uso e ocupação do solo ou outro instrumento semelhante. Para a SPU, tal classificação impacta diretamente na cobrança de taxas patrimoniais diversas, quando se usa ou a Planta de Valores Genéricos - PVG (para imóveis urbanos) ou a Planilha de Preços Referenciais - PPR do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA para a definição do valor do imóvel."
Ainda no sentido ora sustentado, há orientação da CJU/AGU, em situação análoga ao PARECER n. 00084/2020/NUCJUR/E-CJU/PATRIMÔNIO/CGU/AGU:
“Diante de todo o exposto, em comprimento de todas as exigências legais e formais, recomenda-se a revisão da natureza do imóvel, que no que tudo indica, este, possui natureza rural, embasando-se nas documentações e atual legislação, e jurisprudência aqui expostos. Portanto, recomenda-se que seja adotado os valores de referência da taxa de foro de natureza RURAL para o imóvel, como também a nulidade de aplicações de valores/débitos referentes a anos posteriores da Lei nº 241/2008 e Decreto Municipal nº 398 de 2008 (referente ao PDDU das zonas de Cairu/BA), na qual o princípio da anterioridade tributária não se aplica, já que o imóvel apresentou nos autos a2vidade econômica de cunho rural desde o princípio de sua ocupação.” 17. Ademais, ainda em sede de precedentes, localiza-se, sobre o tema, o ofício nº 1091 (4155927) e o Despacho SPU/BA-NUCIP nº7902180, nos quais prevaleceu a posição similar a que pretende ver aplicada ao caso o interessado, ora recorrente, ao consignar que: "2. A definição da natureza do imóvel nos sistemas corporativos da Secretaria do Patrimônio da União- SPU é dada como binária, ou seja, só se pode classificar o imóvel com dois valores possíveis, sendo eles rurais ou urbanos. Sua definição é de competência municipal e é disposto no plano diretor ou plano de uso e ocupação do solo ou outro instrumento semelhante. Para a SPU, tal classificação impacta diretamente na cobrança de taxas patrimoniais diversas, quando se usa ou a Planta de Valores Genéricos - PVG (para imóveis urbanos) ou a Planilha de Preços Referenciais - PPR do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA para a definição do valor do imóvel." (Grifos aditados)
Tem-se, ademais, a orientação trazida pela CGCAV na Nota Técnica nº 14125/2018-MP (doc. 6550852), quando da análise de um pedido de revisão de valor de um imóvel rural:
"5.4 Assim sendo, à principio entendemos como vinculante a alteração do valor de domínio pleno, caso o mesmo comprove-se como rural, devendo ser adotado o valor da terra nua fornecido pelo INCRA, no entanto, destaca-se que não raro, nossos sistemas corporativos, dentre eles o SIAPA, apresentam não conformidades cadastrais, na medida em que os dados cadastrados não são atualizados à luz da real situação dos imóveis. Isto posto, torna-se imperioso destacar que a denominação de "urbano ou rural" não será um dado absoluto e perene a ser informado pela SPU. Em verdade, quem define se tal região, área, trecho, etc., denomina-se como rural ou urbano é o poder municipal por meio de seu plano diretor, devendo a SPU acompanhar as transformações das cidades a atualizar devidamente em seus sistemas corporativos. (...) 6. Considerando a supracitada exposição, eis a orientação desta CGCAV: III - Verificar junto ao plano diretor do município, se o imóvel em questão encontra-se em área denominada rural, fazendo o devido ajuste cadastral no SIAPA se necessário.”
Como sustentamos em nossa obra em coautoria com o procurador do Município de São Paulo e chefe da procuradoria de habitação e urbanismo, Prof. Dr. Alexandre Levin (HUMBERT, Georges Louis Hage; LEVIN, Alexandre. Curso de direito urbanístico e das cidades: incluindo novo marco do saneamento, estatuto das metrópoles, regularização fundiária, estatuto da cidade· 2. ed., atual., rev. e ampl. · Rio de Janeiro: GZ, 2021, p. 63):
É que, considerando-se a determinação de competência própria para edição de normas de Direito Urbanístico, insculpida no art. 23, I da Constituição, bem como a existência do princípio vetorial do planejamento urbano – insertos no art. 182 da Constituição da República e no art. 2º do Estatuto da Cidade –, não se pode olvidar que a definição das áreas municipais em urbana e rural deve ser oriunda dos instrumentos e estudos determinados enquanto deveres ínsitos à materialização da política urbana, levando-se em consideração a vocação atual e futura de determinada área. Ademais, deve ser levada a efeito mediante edição de lei municipal, com destaque para o plano diretor, constitucionalmente obrigatório para os Municípios com mais de 20.000 habitantes, considerando-se o seu território como um todo, as peculiaridades de cada localidade e em face mesmo da eminente preponderância do interesse local nesta matéria, da própria competência constitucional que é conferida ao Município pelo art. 30 da Constituição, e do quanto prescreve o art. 40 e seguintes do Estatuto da Cidade.Numa sentença: a qualificação jurídica pertinente à propriedade urbana e rural é de suma importância, pois estabelece o regime jurídico ao qual estará submetida determinada propriedade e qual a política – se urbana ou rural – deve ser implementada em determinada área do Município, pelo que deverá, sempre, levar em consideração a vocação da área, suas reais necessidades, enfim, os seus fins precípuos, sem olvidar a ordenação planejada, melhor instrumento para compatibilizar a evolução e transformações inerentes à própria natureza do homem e seus reflexos no usar, gozar e dispor das propriedades.”
Diante do exposto, não é o servidor da SPU, nem mesmo a AGU ou lei federal, muito menos um termo de conclusão de obra, um alvará ou uma certidão ou declaração que altera ou não a natureza jurídica do bem de rural para urbano, mas sim o quanto consta do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Municipal, acompanhado ou não do devido processo legal de declaração situacional da área pelo Município e INCRA, respeitado o contraditório e a ampla defesa, sendo o Município, jamais a SPU ou outro órgão da União, o protagonista nesta delimitação, no comprovar, por lei, certidão, fiscalização ou cooperação com o INCRA, a natureza do bem, sem deixar de ser verificável a sua realidade concreta, inclusive mediante controle de legalidade, probidade e razoabilidade do ato do Poder Público Municipal, frente aos parâmetros do CTN, do Estatuto da Cidade e mesmo de prova técnica em contrário, sabendo-se, por óbvio, que os atos jurídicos, sejam públicos ou privados, se presumem verdadeiros, válidos, legítimos, legais e de boa-fé, a teor da LINDB e da Declaração de Liberdade Econômica, bem como da disciplina jurídica do Código Civil e do princípio basilar da Boa Fé Objetiva.
Decisão da SPU diversa desta viola a Constituição e a lei, além do princípio da igualdade, impessoalidade e a garantia da segurança jurídica, podendo gerar responsabilidade por abuso de autoridade, improbidade e dano ao erário por aquele que desrespeitar o PDDU Municipal ou alterar a natureza jurídica do imóvel sem o devido processo legal, a previsão em lei municipal e o ato cooperado do INCRA, gerando, inclusive, para o particular prejudicado o direito líquido de certo de reverter tal decisão junto ao Poder Judiciário, bem como ser ressarcido por eventuais perdas e danos, junto à União e seus Agentes Públicos.
Georges Humbert, advogado, professor, pós-doutor em direito pela Universidade de Coimbra, Doutor e mestre em direito, pela PUC-SP, foi Superintendente de Patrimônio da União no Estado da Bahia.
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