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Covid-19: um teste para a Lei de Liberdade Econômica

Covid-19: um teste para a Lei de Liberdade Econômica


Sabe-se que pandemia do coronavírus afetou vários segmentos da sociedade, tendo em vista as restrições que foram impostas não só aos brasileiros, mas a toda a população afetada. Pululam novas Leis, Decretos, Resoluções e Portarias Federais, Estaduais, Municipais e Distritais, além de Medidas Provisórias da Presidência da República, diariamente, traçando obrigações, faculdades, diretrizes, recomendações, orientações e ate competências. O cidadão, sociedades civis e empresárias se veem numa situação inusitada haja vista o surgimento de normas conflitantes com as ate então vigentes e mesmo entre os diversos entes federativos. Este novo cenário traz a lume um verdadeiro teste para a recém-aprovada Lei de Abuso de Liberdade Econômica.


Sob os sólidos pilares do direito individual à liberdade, segurança e propriedade, insculpidos pelo art. 5°, e do princípio da livre iniciativa da ordem econômica, art. 170, todos da Constituição, a Lei nº 13.874/2019 instituiu a Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica. Tal norma reverbera, em larga medida, no conteúdo jurídico do festejado e consagrado princípio implícito da supremacia do interesse publico sobre o privado.


Com efeito, já no seu artigo inaugural, determina ao Poder Público em beneficio do cidadão, que interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas. Ademais, são princípios que norteiam o disposto nesta Lei a boa-fé do particular perante o poder público e o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.


Parece-nos que este novo regime jurídico apenas reforça, deixa claro, explícito e potencializa aquilo que o direito individuais fundamentais do art. 5 e a ordem econômica constitucional já determinava em seu art. 170. A nosso ver, o primeiro efeito imediato se da sobre os alardeados atributos do ato administrativo. Por exemplo, as presunções de legitimidade, veracidade e legalidade dos atos do poder publico, valem tanto quanto as que agora também militam em favor dos particulares quando em relacionamento jurídico com a administração pública.


Assim sendo, caberá a quem alega, seja ele o poder publico ou o particular, provar vicio em um ato jurídico, fato alegado ou documento acostado em processo administrativo. Como um segundo efeito jurídico, passa a assistir ao cidadão a possibilidade, inclusive, da inversão judicial do ônus da prova em favor do particular, em concertação com o regime jurídico geral de tutela coletiva previsto pelo CDC, e desde que, portanto, prove a verossimilhança das suas alegações e hipossuficiência ante a parte adversa, visto que abstratamente reconhecido como parte vulnerável, na forma do art. 2 da Nova Lei da Liberdade Econômica.


Ora, neste momento de decretação de estado de calamidade por forca da pandemia mundial, muito se evidencia e se alega, como se palavra mágica fosse, a supremacia do interesse público para justificar medidas, muitas vezes, completamente inconstitucionais e ilegais, como o fechamento de fronteiras por estados e municípios.


A supremacia do interesse publico, consubstancia-se em norma jurídica, da espécie princípio, de forma de exteriorização implícita, e prescreve, em seu conteúdo jurídico, que, a despeito dos direitos e garantias individuais de cada cidadão, isto é, o chamado interesse individual juridicamente protegido, não se pode esquecer que estes se somam, se coletivizam e formam o chamado interesse público. Nestes termos, com Santi Romano, este nada mais é do que a soma de interesses individuais, a ser representado por uma instituição jurídica comum, o Estado, o Poder Público, que para isso detêm competências, atribuições, verdadeiros poderes para cumprir deveres que encarna em favor de cada cidadão membro da sociedade.


Disto decorre que o interesse público, sendo conjunto de interesses individuais, nada mais é do que o próprio interesse dos particulares, no seu todo, numa máxima potência. Daí porque, são inerentes ao interesse público a sua supremacia, ou seja, posicionamento do conjunto acima dos interesses individuais isolados, e a sua indisponibilidade, a saber, impossibilidade de ser manejado segundo subjetividade ou interesses de quem quer que seja, senão da vontade soberana do povo, expressada mediante as leis elaboradas pelos seus representantes devidamente eleitos para esta finalidade.


Portanto, ao contrário do que vaticina a melhor e mais festejada doutrina, não há, em rigor supremacia do interesse público sobre o privado, porque o interesse público é o interesse privado, qualificado por ser o interesse privado de um conjunto de indivíduos, de uma comunidade, e não destes vistos isoladamente. O que existe, na nossa descrição da ordem jurídica posta, é a supremacia, ou melhor, prevalência do interesse público para a promoção, preservação e concretização dos interesses individuais juridicamente protegidos, notadamente os fundamentais, cuja a relativização eh possível, mas limitada e bem delimitada pela própria constituição e suas garantias igualmente fundamentais.


Assim sendo, no contexto atual, onde a tradicional noção de supremacia do interesse publico se sobressai ainda mais, e muitas vezes distorcida, sob o viés autoritário resta saber se serão respeitadas e sobreviverão as novas premissas jurídicas pátrias, inovadoramente vocacionadas mais à tutela do cidadão do que às acoes do estado, na oportunidade em que forem submetidos ao controle interno, interno e sindicabilidade do judiciário.


Refere-se, aqui, especialmente à escalada de determinados atos do poder publico, produzidos sob a égide da pandemia do COVID-19, que limitam, em maior grau, ou mesmo anulam direitos e liberdades individuais fundamentais, podem se enquadrar como ilegais, violadores dos princípios da administração, atos absolutamente nulos ou anuláveis, se levada a cabo, no limite da necessidade e adequação, a ordem legal posta pela Declaração da Liberdade Econômica.


Nesta hipótese, os administradores infratores sujeitar-se-iam à obrigação de indenizar, ao processo disciplinar e, presentes requisitos específicos como a má-fé, o dolo, o enriquecimento sem causa e o prejuízo ao erário, ao processo de responsabilidade por ato de improbidade administrativa ou ato as penas colimadas para prática de abuso de autoridade.


Georges Humbert, advogado, professor titular da UNIJORGE-BA, pós-doutor em direito pela Universidade de Coimbra, doutor e mestre em direito do estado pela PUC-SP e fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade ? IBRADES, foi membro do Conselho Nacional de Meio Ambiente e do Subcomitê de Respostas a Desastres do Conselho de Governo da Presidência da República.

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