Passou um ano da polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a competência dos entes federados para atuar durante a pandemia e os embates continuam. Essa semana o STF chegou a postar um vídeo, com certo grau de ironia, sobre o tema, reafirmando que “o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu que jamais proibiu o governo do presidente Jair Bolsonaro de agir no combate à pandemia do coronavírus”. A Corte questionou: “Uma mentira contada mil vezes vira verdade?” O vídeo informa ainda que, conforme decisão do plenário, União, Estados e municípios têm competência concorrente para agir na pandemia.
A decisão se deu ao ensejo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.341, proposta pelo, proposta pelo PDT, sob relatoria do Ministro Marco Aurélio, questionando a constitucionalidade e validade de trechos da Medida Provisória (MP) 926/2020, editada pelo Presidente da República Jair Bolsonaro.
O correto entendimento da matéria pressupõe a compreensão de duas premissas: 1. O Estado de Calamidade da pandemia. 2. O regime jurídico das competências constitucionais, legislativas e executivas, notadamente em matéria de saúde;
Primeiramente, segundo o disposto no artigo 21, inciso XVIII da Constituição compete à União planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações.
Isso foi esvaziado, em parte, pela decisão do STF, que manteve a mera coordenação do planejamento com a União e delegou, a Estados e Municípios, a primazia sobre os atos de defesa nesta pandêmica que causou calamidade mundial.
Segundo, cumpre registrar que é notória a complexidade da nossa federação, peculiar com seus quatro entes (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e competência, ou seja, poderes e deveres, atribuições, as quais se repartem as vezes destinadas a um só deles, as vezes a mais de um, e até a todos ao mesmo tempo.
Para cuidar disso e evitar insegurança jurídica, a constituição destacou diversos dispositivos, procedimentos, formas de controle do exercício irregular das atribuições e firmou princípios para a sua aplicação, notadamente o da predominância do interesse (nacional, regional e local) e o da cooperação.
Pelo princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local.
Um ponto que precisa ser dito: para a lógica constitucional, em competência legislativa e executiva concorrente e comum, aplica-se a predominância do interesse, em caso de conflito. Todavia, o STF tirou sim poderes da União, ao derrubar a norma de solução de conflito da prevalência de interesse e ofuscar a união apenas um encargo de mera coordenação abstrata, bem como inovar o estado de direito, inconstitucionalmente, para criar a regra de que prevalece a norma mais restritiva. Muitas vezes a norma mais restritiva é a que mais causa mal à saúde e ao povo.
Em síntese, e em linguagem coloquial, o que se tem é: Bolsonaro executa e regulamenta e o Congresso Nacional produzem leis em matéria geral de COVID, de interesse de todo o país, de modo uniforme, devendo ser nestas, seguidos, no que couber, pelos Governadores, Prefeitos, Assembleias Estaduais e Câmara de Vereadores, os quais tem prevalência e predominância de interesse, podendo adotar atos e normas específicas, notadamente se seguirem as linhas gerais federais ou se forem mais restritivas que a do Presidente Bolsonaro, no caso de isolamento e protocolos diversos de saúde em tempos de pandemia.
Todavia, o STF limitou, inconstitucionalmente, os poderes de Bolsonaro para somente atos abstratos e de mera coordenação subsidiária, cabendo a Estados e Municípios super-poderes de gestão, para abrir e fechar territórios, determinar a aplicação das verbas, horários de funcionamento, atividades essenciais e outras medidas. Não é preciso ser do meio jurídico, basta olhar a realidade, o seu dia a dia e, ainda, ver todos atos do Presidente que foram revogados ou desconsiderados, para verificar que foram Prefeitos e Governadores que ditaram as regras na pandemia, com beneplácito do STF
Para o STF, Governadores e Prefeitos tem PREVALÊNCIA, não a mera PREDOMINÂNCIA DE INTERESSE, quando suas atuações forem mais restritivas. Ou seja, são os protagonistas da gestão da pandemia do COVID-19 no Brasil, ficando reforçado que mandam no a isolamento social e na determinação de atividades essenciais. E, com cooperação da União, produzem os protocolos de segurança sanitária, gestão de leitos, UTI, compra de respiradores, medicamentos. Em eventual conflito, prevalece o ato de Governadores, Prefeitos, Assembleias Estaduais e Câmaras de Vereadores.
Numa síntese: o presidente Bolsonaro e o Congresso cuidam apenas de medidas econômicas e sociais gerais – que deram certo – e apenas coopera, com organização e em coordenação dos entes, disponibilizam verbas e medidas de ordem econômica, como fizeram, além da uniformização da compra e distribuição de vacinas, insumos e outros; Prefeitos e Governadores fazem tudo o mais e prevalecem sobre o Presidente, independentemente de análise técnica ou de usurpação de competência, ou predominância de interesse. O STF, inconstitucionalmente, tirou poderes do Poder Executivo da União e criou uma nova regra de repartição de competência, a do que vale mais o mais restritivo em matéria de calamidade e pandemia.
Em levantamento preliminar, foram detectadas 9 ações civis públicas movidas pelo Ministério Público de São Paulo contra decretos municipais que previam disposições conflitantes com os estaduais em comum, os municipais apresentavam disposições menos restritivas sobre isolamento social. No caso, a Corte paulista tem entendido pela prevalência da norma estadual, por representar proteção maior à saúde; melhor regulamentação, sendo preferível uma estadual a mais de 600 municipais; e suspensão dos atos municipais contrários. Referido posicionamento tem sido referendado pelo STF no julgamento de reclamações constitucionais.
É isto que está posto e seguido no tema, a despeito de não concordamos com a tese de que a solução de conflito se dê pelo critério da norma sanitária mais restritiva, porque não é sequer racional ou juridicamente adequado, pois que nem sempre o mais restritivo é o mais seguro, eficiente, eficaz, econômico, sustentável ou justificável, com base em estudos, dados e na ciência.
Assim, acerta Luiz Augusto Módolo ao afirmar que “Por decisão liminar do STF na ADPF 672, foram criadas, durante a pandemia, 5.596 políticas de saúde, número dos entes federativos (União, Estados, etc.) que poderiam decretar lockdown e quarentena.”
Nesta quadra, resta claro que O Supremo não proibiu o presidente de agir, mas limitou sim, seus poderes, seja para atuar na calamidade, seja no predominante interesse nacional, ao impedir que o mesmo disciplinasse sobre quarentena, lockdown e atividades essenciais, mesmo quando de interesse predominante nacional e , na prática, dar uma competência privativa e exclusiva aos Estados e Municípios, com prevalência dos atos de Governadores e Prefeitos, quando mais restritivas.
Desta forma, os fatos, as normas, as decisões do STF e de outros tribunais que sentimos na pele não negam: o STF não tirou, mas limitou, inconstitucionalmente, poderes do presidente Bolsonaro. Ao se negar e disfarçar isso, comete-se fakejus.
Georges Humbert, advogado e professor, é pós-doutor em direitos humanos pela Universidade de Coimbra – Portugal, doutor e mestre em direito do estado pela PUC-SP, Gestor e Conselheiro com Certificação ICSSpor Prova na Modalidade Capacitação Ênfase Administração.
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